domingo, 3 de fevereiro de 2008

Ao noivo*

Trago meu corpo molhado da chuva
a esperança do reencontro
nesse tempo tão palpável / ainda que tão ilusório
vamos não estreá-lo com sorrisos exagerados
e sim com dolorosa alegria

o bloco acabou-se
enquanto a memória se desvela e se ordena
a fronteira está aí/ prógida em eventos marcados
horários a cumprir
e tardes sóbrias
afinal acreditamos em tão poucos milagres
que sequer vale a pena enumerá-los

sou estrangeira nesse carnaval colorido
pródiga em obsessões e medos e disfarces
hábitos e confianças e utopias
que fizemos com amor / desfizemos quando a música acabou
quando este carnaval terminar e nascer o outro
talvez nos falte o reconhecimento
a que (por tão poucos minutos) nos acostumamos a ter
eu já sem minha cartola de brilhos
você sem o véu

seremos exilados um do outro
sem telefone
nem sobrenome
dispersos nos meandros do acaso
com as velhas saudades aprendidas
os melhores rancores malogrados
porém com a tristeza refrescante
que já ninguém apaga e nos comove
que é coisa nossa porque fomos de outros
de todos e de um
eu de você
você de mim

cada carnaval é um mito ou um amor
no entanto só ao findar nos deixa atônitos
diante da beleza e dos encantos do acontecido
sem saber o que houve / o que está havendo
o que ficou atrás em cada nunca
qual é o mundo real / o que se apaga
ou que nos deixa o coração sem deuses

quando surgir novamente o sol que traz presságios
não vai valer a antiga contra-senha
não serei mais mágica
nem você mais noivo
seremos os suspeitos
por termos uma vez nos encontrado
agora mal nos resta a breve lembrança do beijo
e outra de corpos molhados unidos pela fantasia de mais um carnaval

dali saímos com tímidos destinos
para o futuro e suas provocações
à procura de coisas não acháveis
seja abismo de amor ou pico de ódio

ao fim do dia ainda ressoam alguns tambores
tamborins de talvez / prognósticos de mais chuva
correspondendo-se à poça já formada
com um censo de medos e coragens

ao fim do carnaval as palavras
fragmentam-se em sílabas e prantos
tão poucas as palavras trocadas
por si só os sorrisos já valeram (e o beijo)
há alguns que se reconhecem pelas navalhas do silêncio

eu trago meu corpo molhado de chuva
e o coração despido e a sorte com asas
a esperança do reencontro
vamos não estreá-lo com sorrisos exagerados
e sim com a dor da alegria


* inspirado no poema "O acabou-se", de Mario Benedetti.

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