sábado, 20 de setembro de 2008

É tudo invenção

Ela disse que escreve sem saber o que escreve. Vai colocando as palavras na tela branca sem saber qual será a próxima. Quando vê, tem uma frase, depois um parágrafo e mais uma linha de sentimentos que não sabe reconhecer. Disse que fora a Feira de São Cristóvão encontrar a sua Macabéia, não achou. Voltou com cheiro de churrasco nos cabelos e gosto de castanhas-de-cajú velhas. Disse que quando é muito tarde da noite, ou muito cedo da manhã, abre os olhos e fica a escutar o silêncio. O silêncio faz zumbido que dói o ouvido, disse. Certa vez, escreveu a palavra regalo sem saber o significado. Soou bonito regalo e ele deixou assim mesmo. Descobriu que poderia ser presente em espanhol. Queria que fosse casca, ou caroço, mesmo que casca e caroço sejam praticamente antônimos. Desde a segunda série - que hoje deve se chamar segundo ano do ensino médio, não sei para quê - não escrevia antônimo. Chegou a pensar que a palavra não fosse essa, não lembrava de se parecer com Antônio, e sentiu a saudades de escrever sinônimo, onomatopéia, convexo e de resolver uma equação com x, y e z. Se bem que nunca tinha conseguido entender porque x era igual a zero. Disse que sonhara com formiguinhas andando por sua língua, passeando entre os dentes, subindo pelo céu da boca e saindo pelo nariz. Ás vezes achava que dentro dela morava um formigueiro, os bichinhos sempre trabalhando, por isso aquele buraco no estômago. A imagem me fez lembrar um cadáver, mas ela me acusou de mórbida e de não saber enxergar a beleza das coisas. Ela me disse que escreve sem saber o que escreve, só para que eu leia. E quando não tem nada para contar, inventa. Ás vezes quer me deixar com raiva só de maldade, aí me manda lindos contos de amor que não me incluem. Quando quer me deixar com ciúmes, diz que escreve para que ele leia - e a verdade é que sempre o faz. Quando quer me deixar triste, não me escreve e ponto, tampouco me procura. É de propósito, só porque eu gosto de você, disse-me, com ar implicante de menino da segunda série que quer namorar. Eu quero um abraço, eu disse, com ar de menina que precisa se encontrar. E assim fomos caminhando, sem saber o significado das coisas. (Coisa é uma palavra muito infantil, ela ainda é uma criança). Quando estamos no escuro, só mesmo a mão alheia faz o coração bater mais devagar - ela ainda não entendeu que qualquer mão não serve, tem que ser aquela que encaixa.

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