quarta-feira, 9 de abril de 2008

Quando o mundo parece estar de cabeça para baixo

Como você descreveria sua trajetória até aqui?
Você quer dizer minha trajetória de vida?
Isso
Houveram alguns momentos importantes primordiais para compreende-la
Você pode me contá-los?
Quando eu tinha uns 15 anos…
Não, não. Comece antes disso, por favor.
Quando eu nasci (risos) Você deve estar brincando, quer mesmo que eu conte a minha vida desde o momento do meu nascimento?
(Ele assentiu) Como era a casa em que você nasceu?
Acho que eu nasci num apartamento em São Conrado, em cima do supermercado Sendas
Como era?
Não me lembro, acho que só fiquei lá por um ano. Depois nos mudamos para uma casa no Itanhangá. Depois para João Pessoa.
O que você foi fazer em João Pessoa?
Não sei, meu avô trabalhava lá. Então nos mudamos. De lá eu só lembro da escola de natação.
Quantos anos você tinha?
Uns 5, eu acho. Ou 6.
E o que você lembra?
Lembro do meu pai me levando para a natação, chamava-se Pingo D’água.
Não lembra de mais nada?
Não.
Nenhum detalhe?
Não.
Você lembra de algum momento da sua vida em um passado distante?
Não. Só às vezes, uns flashes.
O que o seu antigo analista falava disso?
Não sei. Nunca falamos sobre isso.
Por que?
Porque eu sempre achei que todas as pessoas do mundo se lembravam do mundo assim como eu. As pessoas lembram de tudo?
De quase tudo.
Eu esqueço… Eu esqueço muito rápido…
Você tem problemas de vínculos.
Isso eu já sabia.
Como você poderá definir a si mesma se não tem memória?
Eu não sei. Nunca pensei sobre isso.
Quem é você?
Eu não sei. Um pingo d’água escorre pelo rosto.
Desculpe-me, mas vamos ter que continuar na semana que vem. O seu tempo acabou.

Limpou o rosto no klinex sobre a mesinha ao lado. O lenço ficou sujo com maquiagem. A lágrima fez uma listra branca nas bochechas salpicadas por sardas. Ela sentia-se como aquela lágrima, um pingo d’água. O que é, o que é que cai em pé e corre deitado? A gota de chuva. Muito provavelmente essa era a explicação para o mundo parecer estar de cabeça para baixo. Muito provavelmente essa era a explicação para pensar que todas as pessoas do mundo viam o mundo como ela. As pessoas se lembravam. Ela não. Uma gota d’água.

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