sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Um dia despertei, sentei na cama e sorri

“Existem apenas pessoas, e em todas há um grão da verdadeira, e nenhuma delas tem o que do outro nós esperamos e desejamos”. (De verdade, Sándor Márai)

“Dá pra ver que eu chorei?…” Essa foi a última frase que li antes que De verdade, do escritor Sándor Márai, caísse do alto da janela do meu quarto e se espatifasse nos densos arbustos do jardim. Era uma noite no início de mais uma primavera, não havia estrelas no céu, o ar estava relativamente frio e podia-se ouvir as ondas estourando na praia de São Conrado. Antes que eu chegasse em “É estúpido, mas você sabe, somos assim estúpidas”, um vaga-lume pousou no meu ombro. A pequena luz verde piscante tornou-se mais um ponto entre as dezenas de pintas que colorem a minha pele. Com um salto brusco, soltei um grito contido e deixei o livro voar pela noite. A capa com a fotografia das mesinhas de um café vazias caiu bem entre as bromélias e a palmeira - a mesma árvore aonde os passarinhos constroem seus ninhos nessa época do ano. As páginas amassadas esconderam o resto da história; assim como a verdade se perdia entre mais uma ilusão. Alguém já deve ter dito algo como “pobres aqueles que acreditam”, se não disseram, escrevo aqui pela primeira vez.

Eu tenho medo de muitas coisas. Seres voadores, entre elas. Nada contra as asas, desde que as patas não pousem em mim. No entanto, durante toda a minha vida, espécies voadoras escolheram o meu corpo para o momento do descanso. No primário, estava pulando amarelinha no pátio da escola, quando uma borboleta amarela de bolinhas pretas - ou seria o contrário? - pousou nas minhas costas. Tirei a blusa ali mesmo, no meio de todo mundo, e virei piada entre as outras crianças até o fim do ano letivo. Anos mais tarde, fui atacada por um enxame de borboletas coloridas enquanto andava a cavalo na fazenda de uma amiga. Gritei tanto que o bicho disparou. Depois vieram os passarinhos e seus voos rasantes, mais algumas borboletas nos cabelos, e até mesmo uma pomba branca que achou que o meu ombro fosse poleiro e não arredou pé do parapeito da minha janela - isso me privou das leituras mais agradáveis - até que eu mandasse o jardineiro sumir com ela. A ave era tão branca, que parecia saída da cartola de um mágico. Até que veio esse vaga-lume me obrigar a sair no meio da noite, ao relento, em busca De verdade no canteiro.

Me equilibrei em duas pedras, pulei uma grande bromélia, coloquei os pés com receio entre a folhagem baixa, vi um lagarto fugir por entre o mato, e alcancei o livro ao pé da palmeira que eu vi crescer pela minha janela. No meio da noite, sob o relento, estava De verdade, molhado de orvalho, sujo de terra, com as folhas amassadas. Segurei o calhamaço de 445 páginas no mesmo segundo em que a luz acabou - isso aconteceu sem uma gota de chuva, o que tornaria o fato bem normal por aqui. Fiquei no breu, mas com a verdade nas mãos. No horizonte, o farol piscava vermelho e branco me mostrando o caminho. Entre a folhagem próxima, o vagalume verde. Pobres aqueles que acreditam que quando duas águias se encontram planam lado a lado. Águias voam. E assim como quaisquer seres com asas, me dão um baita susto ao se aproximar. Fiquei com a verdade nas mãos, apesar da escuridão da noite.

sábado, 20 de setembro de 2008

É tudo invenção

Ela disse que escreve sem saber o que escreve. Vai colocando as palavras na tela branca sem saber qual será a próxima. Quando vê, tem uma frase, depois um parágrafo e mais uma linha de sentimentos que não sabe reconhecer. Disse que fora a Feira de São Cristóvão encontrar a sua Macabéia, não achou. Voltou com cheiro de churrasco nos cabelos e gosto de castanhas-de-cajú velhas. Disse que quando é muito tarde da noite, ou muito cedo da manhã, abre os olhos e fica a escutar o silêncio. O silêncio faz zumbido que dói o ouvido, disse. Certa vez, escreveu a palavra regalo sem saber o significado. Soou bonito regalo e ele deixou assim mesmo. Descobriu que poderia ser presente em espanhol. Queria que fosse casca, ou caroço, mesmo que casca e caroço sejam praticamente antônimos. Desde a segunda série - que hoje deve se chamar segundo ano do ensino médio, não sei para quê - não escrevia antônimo. Chegou a pensar que a palavra não fosse essa, não lembrava de se parecer com Antônio, e sentiu a saudades de escrever sinônimo, onomatopéia, convexo e de resolver uma equação com x, y e z. Se bem que nunca tinha conseguido entender porque x era igual a zero. Disse que sonhara com formiguinhas andando por sua língua, passeando entre os dentes, subindo pelo céu da boca e saindo pelo nariz. Ás vezes achava que dentro dela morava um formigueiro, os bichinhos sempre trabalhando, por isso aquele buraco no estômago. A imagem me fez lembrar um cadáver, mas ela me acusou de mórbida e de não saber enxergar a beleza das coisas. Ela me disse que escreve sem saber o que escreve, só para que eu leia. E quando não tem nada para contar, inventa. Ás vezes quer me deixar com raiva só de maldade, aí me manda lindos contos de amor que não me incluem. Quando quer me deixar com ciúmes, diz que escreve para que ele leia - e a verdade é que sempre o faz. Quando quer me deixar triste, não me escreve e ponto, tampouco me procura. É de propósito, só porque eu gosto de você, disse-me, com ar implicante de menino da segunda série que quer namorar. Eu quero um abraço, eu disse, com ar de menina que precisa se encontrar. E assim fomos caminhando, sem saber o significado das coisas. (Coisa é uma palavra muito infantil, ela ainda é uma criança). Quando estamos no escuro, só mesmo a mão alheia faz o coração bater mais devagar - ela ainda não entendeu que qualquer mão não serve, tem que ser aquela que encaixa.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Your love alone is not enough

Quando te vi do outro lado da rua, esqueci do chão e tropecei no buraco. Você riu, eu fiquei roxa, mas fingi que nada aconteceu e você também. Outros braços seguraram a minha queda, eu fingi estar salva, e você acreditou. Prestou atenção nas mãos dele na minha cintura, os dedos entre os meus cabelos, deslizando pela nuca. Eu sorri antes que ele me beijasse, você viu, mas fingiu que não, e eu também. Quando os braços dele se enroscaram no meu corpo, a cabeça apoiada no meu ombro, eu abri os olhos e dei de encontro com os seus. We danced together on the roof of the party, we didn’t give a chit about what they would say. Eu fingi que dessa vez era igual e dentro de mim soube que você concordava. Você atravessando a rua decidido a me tirar dali, eu já estava vendo tudo, a confusão, eu dizendo que não sou sua, que você tem que perder essa mania, que não gosto de confusão, que se eu abrir mão de tudo por sua causa, você não consegue encarar e desiste. Mais um gole de chope, e seus olhos no fundo de mim, meu corpo pedindo para ir, esse seu jeito de me convencer de qualquer coisa, de sair de mim, de dizer que sim, que eu largo tudo para estar junto de você. E ele falando, segurando a minha mão, beijando o meu pescoço, e meus olhos sempre voltavam para os seus. Eu querendo me livrar de você, parar de sentir o seu cheiro, esquecer a gente atrás da pilastra, sem ligar para o que eles diriam. We didn’t give a chit. Eu dizendo não, você fingindo acreditar e eu também. A verdade é que eu sempre estarei no Braseiro e você no Hipódromo, você sempre vai sorrir quando eu tropeçar, nossos olhos sempre vão se encontrar na multidão, você sempre vai saber o que eu estou pensando, eu sempre vou saber te ler pelos olhos, e ainda sim, tudo vai continuar como antes. A lembrança de me perder em você. Testa com testa, a sua mão na minha nuca e aquela paz que eu nunca mais encontrei. Por isso que eu deixo o chope pela metade, os amigos na mesa, ele ali sem saber o que houve e prefiro simplesmente vir para casa. Eu nunca vou conseguir te ver do outro lado da rua sem tropeçar. You won’t make a mess of me .

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Anna sem Ana

"Ana me deixou e isto dói. Muito. O espetáculo poderia ser resumido nessa simples frase. Tudo o que é dito e o que acontece em cena é tão somente a ausência de Ana. Eu sem Ana. O texto é extraído do conto "Sem, Ana, Blues" em que Caio Fernando de Abreu pinta um retrato poético e doloroso de falta. Mas que falta é essa que Ana representa? No conto de Caio, trata-se de uma mulher que abandonou um homem. Mas, ainda que esse seja o seu significado primeiro, procuramos, na peça, trabalhar com outras possibilidades de leitura. A começar pelo fato do texto ser interpretado por uma atriz. Poderíamos, assim, estar falando de uma mulher que foi deixada por outra. Mas podemos pensar o sentido desta ausência para além da pessoa amada. A atriz em cena também se chama Ana. Portanto, Ana sem Ana. Uma pessoa que sente falta de uma parte sua que se foi com a partida de outra, do que ela era com essa outra pessoa. Ou então, tão somente a ausência de si mesmo. De uma parte nossa que ficou para trás simplesmente porque mudamos e deixamos de ser quem éramos, porque deixamos a nós mesmos. Ou ainda, Ana poderia representar a falta do que gostaríamos de ser, de ter, de viver. A ausência em si, porque sempre há algo faltando. Ana é o nosso eterno buraco. Porque por mais que Ana esteja com Ana, mesmo assim, e sempre, Ana estará sem Ana". (Ivan Sugahara)

Eu estou ficando sem Anna, e isso me assusta imensamente. Medo de me perder no buraco. De afundar na minha profundidade. Nossa, como estou intensa e chata! Ainda bem que você me entende e sabe que metade dessas palavras são drama, puro drama. Meu padastro me qualifica de "Terrorista", isso quando não me chama de "Meu nome é Cultura". Isso que dá nascer na família errada. Oh well, é Caio Fernando Abreu sem Ana.

"Quando Ana me deixou - Essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: Quando Ana me deixou - e essa não-continuação era aúnica espécie de continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela". (CFA)

Estou me perdendo de mim mesma e com muito medo do que está por vir. Estou abandonando Anna. Como será a nova Anna? Certa vez te disse que não me conhecia, que tinha medo de me envolver porque não me conhecia. Temo o conhecimento e o envolvimento que poderá vir com ele. Eu não quero me entregar. Tenho medo do que posso ser nas mãos de outro. Gosto do controle, por mais que muitas vezes o perca de vez - ainda bem que esses momentos só duram alguns segundos.

Tenho um buraco de angústia no peito. Parece um rodamoinho de vida.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Outras vidas

Vi-me comprimida dentro de um corpo que não é meu. Obrigada a olhar para dentro: uma pomba branca cruzou a escuridão das minhas pálpebras fechadas; um horizonte em solo árido, rachado pelo sol ardente e a seca nordestina, apareceu como um slide. Paisagem triste, porém bela. O céu de um azul anil, o pôr-do-sol a meio palmo do fim, uma única árvore magra, ausente de folhas, sobrevivente na terra laranja. Senti-me jovem, comprimida dentro de um corpo que não é meu. O olhar no horizonte isolado, seco e infinitamente só. Tem vezes que eu esqueço de respirar. A alma precisa de um corpo, o corpo precisa de ar. O encontro de almas é tão efêmero quanto roçar dos corpos. O grande momento só acontece quando os corpos se unem simultaneamente às almas.
Vi-me comprimida dentro de um corpo que não é meu. A minha alma sente não pertencer a lugar algum. Na escuridão das pálpebras fechadas, minhas mãos idosas tem unhas sujas de terra. Os pés pequenos, sapatilhas pretas de pano. O rosto coberto pela burca preta, os cabelos grisalhos escondidos, a pele tão marcada pelas rugas, quanto o solo cor de tijolo da outra deixava-se rachar pelo sol. Eu rachava pelo tempo. Do lado direito uma senhora chora em silêncio, cabeça entre as pernas. Do lado esquerdo outra senhora murmura uma prece. Eu aperto tão forte a correntinha de ouro enrolada na minha palma direita que ela corta a pela seca. Uma gota de sangue escorre. O horizonte é um corredor cheio de mulheres e burcas negras. Tem vezes que eu esqueço de respirar. Não sei se a dor, a pressa de sair dali, ou o falta de palavras. O grande momento é a morte.
Vi-me comprimida dentro de um corpo que não é meu. Nos olhos fechados, a vida parece slide de filme dos anos 70. Sou uma criança que brinca de rodar. Rodar, rodar, rodar. Rodar cada vez mais rápido. Quem sabe assim a alma de desprende desse corpo que não me deixa voar? Os objetos em volta do corpo que roda perdem a forma.. Parede amarela, vaso chinês, Monet, boneca de porcelana, cinzeiro sujo, livros de capa de couro, sofá encardido, ganham a mesma cor: cor de vento. O grande momento é quando fecho os olhos de olhos fechados. Por um minuto me sinto cor do vento. Pena que sempre vem a tontura do corpo, que faz a alma tropeçar.
Vi-me comprimida dentro de um corpo que não é meu. Nos olhos fechados, o medo de abrir. A vida parece mesmo flashe de realidade, principalmente quando há consciência das pálpebras grudadas. A cabeça gira sem rodar. São pensamentos de lá para cá, num vai e vem de idéias, sempre rápidas de mais para se concretizar. A mente é mesmo bomba relógio terrorista. Máquina sabotadora dos grandes momentos. Dá espaço que ela pensa, analisa, descreve, trabalha, inventa, sonha, vive, escreve, faz, enrola, desabotoa, desalinha, constrói tudo outra vez, sempre diferente. O grande momento há de ser quando ela pára. Há de ser. Nem que seja em outro corpo.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Eu sei

O corpo quer domir, a cabeça quer pensar, a mão anseia segurar o cigarro, mas os dedos querem escrever. A boca quer beijar, alguma parte de mim quer dançar, mas os olhos estão cansados de enxergar além.
“One day I’ll grow up
I’ll be a beautiful woman

One day I’ll grow up
I’ll be a beautiful girl

But for today I’m a child”

Antony & the Johnsons

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Monalisa Pura

Ou , deixa estar jacaré que a maré há de secar
Ou, a vida é mesmo muito estranha
Ou, um quinhão por uma vida regrada
Ou, a partir de amanhã tudo vai ser diferente
Ou, sobre madaleines, macarrons, sushi, padres, zoológicos e astrologia

Quando o despertador tocou às 6h30, como era de se esperar quando o alarme toca, eu apertei o botão que me dá mais cinco minutos na cama e virei para o lado direito, travesseiro em baixo do joelho esquerdo dobrado, perna direita esticada, edredom até a orelha, tudo em seus devidos lugares, só mais cinco minutos não vai ter problema nenhum. Quando virei para o lado esquerdo e estiquei o braço para alcançar os óculos, pegar o celular e olhar as horas, vi que já eram 9h30 e eu estava atrasada de novo. Ah não, começou, e eu não entendo mesmo porque não consigo seguir uma vida regrada de gente normal, com hora para dormir e acordar, gente que não é tão mimada e consegue no mínimo obedecer o despertador e diferente de mim, não faz só o que quer. De hoje em diante eu quero fazer planos e chega de energia gasta com aventuras que não levam a lugar nenhum. Decidida a mudar de vez toda uma filosofia de vida, fiz como dizem os livros de auto-ajuda e a filosofia oriental e comecei pelas pequenas coisas. No café-da-manhã troquei iogurte com aveia por meio papaya, um pedaço de queijo minas e uma xícara de café preto. Talvez o erro tenha sido clicar na página do horóscopo gravada na minha lista de “favoritos”, por que sei, que partir do momento que li as primeiras linhas sobre o dia de hoje, decidi também que não leria mais horóscopo, porque eles estão sempre certos e isso influência muito tudo ao meu redor. O de hoje era uma mistura de “libertar as amarras que prendem a alma ao passado“, com “não acreditar nas coisas que acontecem” e “preguiça adota máscaras enganosas”. Eu que já sentia que seria um dia muito estranho, tinha agora a certeza. “Vivemos num mundo de cobras”, era a frase de uma conhecida no MSN. “Quem nasce para lagartixa nunca chega a jacaré”, a da outra. E o mundo já parecia um zoológico, quando um beija-flor verde garrafa entrou junto comigo pela porta do carro, na boa, eu comecei a não acreditar nas coisas que aconteceriam dali em diante, MESMO. Vamos aos fatos: Um e-mail chega à minha caixa de entrada. “Parabéns pela reportagem, blablablabala … A foto do abre é um dos melhores retratos que vi em toda a história da revista, monalisa pura”. Isso mesmo, a pessoa usou “Monalisa Pura” como adjetivo. Me diga se não é mesmo sensacional. Enquanto isso, o Marechal imprime 20 páginas. Desce para pegar as impressões no andar de baixo. Sobe. Gargalha. Diz: “Monalisa Pura!”. Imprime mais 20. Desce. Sobe. Ri. Diz: “O romance tem 500 páginas, foi recusado por duas grandes editoras. É que Anna, 150 páginas são só de sacanagem”. Imprime mais 20. Desce. Sobe. Ri. Passa os olhos pela página. Diz. “Justamente as 150 que estou imprimindo. Monalisa Pura!”. Gargalha. Monalisa Pura vira sinonimo de maravilha, sensacional, incrível, e o que mais a sua imaginação mandar. Até que os padres da igreja colada ao jornal, começam uma partida de futebol. E como qualquer partida de futebol, o espetáculo fica por conta da torcida, que vibra: “ Olê, olá, São Judas vem aí, e o padre vai pegar” , “Jesus! Jesus! Jesus!”, “ê ô, ê ô, Jesus é o terror!”. Aí o Nelson diz que 33 é veterano, e o Júlio completa que diferente do Pelé, Jesus soube a hora de parar. E piadinhas é o que não faltam, e alguém solta “Monalisa Pura”. E todo mundo ri muito. Aí corre o boato que o estagiário foi o enterro do Fausto Wolff e perguntou para o dono do jornal quem era o dono do jornal, e isso não é piada. E no meio disso tudo, vem o outro e me diz no google talk que “gente com cara de madelaine não sabe achar bangu no mapa”, e eu digo que surpreendi o outro por gostar de cabrito enquanto ele achava que eu tinha cara de sushi de cinquenta reais, e ele insiste: “você não tem cara de sushi, tem cara de madaleine“. Esse aí ainda vai se surpreender muito comigo, eu sou ótima de mapa. Não que eu queira achar Bangu, mas enfim... o chefe reponde o meu e-mail "segue o texto para essa semana" com uma única palavra: “Tintuntá”. E eu sem entender porque não consigo ter uma vida regrada…. Deixa estar jacaré, que a maré há de secar.

domingo, 7 de setembro de 2008

Previsão do tempo: chuva forte com rajadas de vento. Cuidado: risco de desabamento

O sol da manhã passou pelo vidro da janela e um feixe de luz refletiu sobre as pétalas de flor laranja espalhadas pelo chão do hall. Os pés descalços sentiam a textura do tapete de palha. A porta entreaberta deixava entrar o vento forte que antes despetalara as flores do arranjo em cima da mesa. A luminosidade do dia que começava a fez franzir os olhos e o nariz. A pele pálida e sem cor pedia o abrigo escuro do quarto, o calor da cama, o afago do sono. A camisola curta de algodão branco deixava transparecer o coração em pedaços. Alma encolhida pela falta do abraço. Lembrou do sonho do qual acabara de acordar. Ele o perseguia pelas ruas do Centro, mas ela não sabia que direção tomar. Todos os prédios pareciam iguais, as recepções tinham o mesmo ar e a presença dele atrás dela desaparecia no momento em que ela virava-se para encontrá-lo. O cheiro de gente deixava rastro. Angústia que tomava o peito agora amornado pelo sol da manhã. Vontade de não começar o dia, de voltar para a cama. Por mais tristes que fossem os sonhos, pior ainda seria a realidade. O cheiro do café fresco encontrava seu caminho pela casa. O estômago embrulhado pedia que ela chorasse na manhã de mais um domingo de sol. Que lindo domingo de céu azul, brisa quente e pétalas laranjas pelo chão. Lágrimas secas amontoadas no fundo do peito formavam um imenso mar, oceano profundo em seus mistérios. A dor tão íntima não alcançava os olhos, não se deixava correr pela face branca. As solas sentiram a segurança do piso de tábua corrida e caminharam em direção ao mármore gelado do chão da cozinha. Ela sentou na cadeira de plástico branco, de design moderno e formas arredondadas, cruzou as pernas e esperou que lhe servissem o café quente. Ouviu dizerem que a camisola estava curta demais, que deveria cobrir as pernas, que os ombros com as sardas de fora a faziam meio nua, e imediatamente lembrou que estava nua, mesmo vestida. Entregara sua alma, seus defeitos e qualidades, na esperança de que ele fosse capaz de entende-la. Que a segurasse em seus braços, reconfortasse com o abraço apaziguador e confirmasse aquilo que ela já sabia: que foram feitos um para o outro. O rosto sem sorriso, a vontade de silêncio, transparecia toda a dor que sentia. Perdia aos poucos o rumo e a palavra. Ele recusou o maior presente que ela poderia oferecer: coração, alma, corpo, carinho, noites e noites de risada. Ele disse que não, obrigada. E agora ela tinha que encarar mais um domingo de sol. Provou o café quente e decidiu voltar para o quarto. Ficar na escuridão é bem mais seguro que se aventurar numa tarde de sol, principalmente quando o vento quente avisa que por aí vem temporal. Ela vai desabar a qualquer momento.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

humpf

Só penso em Américo Pisca-pisca e suas abóboras. Américo fica sentado sob a árvore dizendo que o mundo é errado e que as jabuticabas, levinhas, deviam ficar em árvores baixas, rasteiras, e as abóboras, pesadas, deviam ficar nas árvores de troncos fortes. "No dia em que eu mandar no mundo", ele diz. "Tudo isso vai mudar". Ele adormece e cai uma jabuticaba na cabeça dele. Não preciso continuar a história, né? Agora, toda vez que eu penso que se fosse prefeita proibiria caminhões de circular pela cidade de 6 às 22hs; ônibus de entrarem em ruas pequenas; banheiros que são divididos em homens e mulheres, mas a pia é em conjunto; chocolate de engordar e outras coisas mais sem graça ainda, eu só penso no Pisca-pisca e suas abóboras. Ando precisando do barulho do silêncio, ou então, muitos abraços, alguns beijos e pelo menos um frasco de floral. E gostaria muito de contar ao Américo Pisca-pisca sobre a existência de uma fruta chamada jaca.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Non, je ne regrette rien

Fomos juntos na exposição de Clarice Lispector. Você disse que assim como ela só escreve quando quer, eu só faço o que quero. Concordei com a cabeça. Quando a mocinha do museu disse que eu não podia datilografar na máquina de Clarice, nem brincar de ser escritora e, sem precisar dizer nada, disse que as palavras de Clarice eram só de Clarice, nós trocamos olhares e sabíamos que pensávamos a mesma coisa: “Essa gente é mesmo muito chata”. Rimos muito, e veja só essa carta do Sabino, e aquela do Caio Fernando se dizendo fã, e Clarice foi uma mulher tão estranha, não me surpreende que seu mundo interno seja tão rico e seus poros transpareçam em cada vírgula, estejam ou não elas nos lugares certos. E chovia lá fora. E eu e você ríamos muito. Pensamos uma lista de coincidências, a começar por eu ler Sophie Calle ao mesmo tempo que você me mostrava um livro dela. E tudo bem que ela seja genial, mas um livro custar R$380 é mesmo um roubo. Eu também adoro o cabrito com arroz de brócolis e alho do Nova Capela e você não acreditou porque eu tenho cara de sushi de cinquenta reais. E conversamos sobre Turandot, Rimbaud, Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade, porque Vinicius, me dizia você. A pilha de bolachas da Brahma crescendo geometricamente no canto da mesa, o papelão meio molhado esfarelando, e as mãos se tocavam, e quando quase lá, um pouco de floral para disfarçar. E ríamos muito. Torcicolo, não, pleonasmo. E listávamos infinitos motivos ao quadrado para ficarmos de fato juntos, mas o único que aparentemente nos mantém separados pesa mais que todas as razões e acasos. “Not to kiss again, seems like pretending. We loved, we laugh, we cried. The story ends, but we’re just friends…” dizem as notas de Stan Getz & Chet Baker, naquela versão que eu tanto gosto e aposto que você também. E as risadas foram levadas a outros bares, e por horas a fio a beber, já tripulantes da embarcação ébria, a como você gosta tanto de dizer, Cazuzear. E eu te perguntei como era mesmo aquela palavra que você gosta tanto e que significa algo como rápido, passageiro. Efêmero, é isso mesmo. E rimos muito. E como disse o velho Braga naquela crônica: “E fomos tocando pela tarde e pela noite, de um lado e outro, como se estivéssemos procurando uma pessoa amiga, uma pessoa que procurávamos a tanto tempo e que já havíamos esquecido quem era mesmo. E não tinha importância. De repente me contaste coisas amargas. Eu mirei tua boca, teus olhos e tua testa com um profundo respeito”. E entrelaçamos as mãos, e os corpos, e alma repleta de floral. Os bolsos lotados de chicletes baratos, o cheiro de sândalo e aquele verso que o vendedor disse e que na hora soou tão lindo e surreal, mas que já esqueci. E rimos com a entrevista de Vinicius na Tv Cultura, a minha foto na sua cortiça, e eu quase sufoquei no casaco de lã, e pediu que eu tirasse a blusa. E eu não tirei. Já estava despida e você concordou que eu pareço mesmo andar por aí de canga, com a alma livre e aberta para quem quiser olhar. Eu fingi concordar, sem precisar dizer que eu ficava muito mais a vontade com você. E fugi. Fugi pela varanda assim que veio o raiar do dia, pulando poças d’água de chuva como se tivesse feito algo errado. “Non, je ne regrette rien”, já cantou Edith Piaf. Ou quase nada.