Vi-me comprimida dentro de um corpo que não é meu. Obrigada a olhar para dentro: uma pomba branca cruzou a escuridão das minhas pálpebras fechadas; um horizonte em solo árido, rachado pelo sol ardente e a seca nordestina, apareceu como um slide. Paisagem triste, porém bela. O céu de um azul anil, o pôr-do-sol a meio palmo do fim, uma única árvore magra, ausente de folhas, sobrevivente na terra laranja. Senti-me jovem, comprimida dentro de um corpo que não é meu. O olhar no horizonte isolado, seco e infinitamente só. Tem vezes que eu esqueço de respirar. A alma precisa de um corpo, o corpo precisa de ar. O encontro de almas é tão efêmero quanto roçar dos corpos. O grande momento só acontece quando os corpos se unem simultaneamente às almas.
Vi-me comprimida dentro de um corpo que não é meu. A minha alma sente não pertencer a lugar algum. Na escuridão das pálpebras fechadas, minhas mãos idosas tem unhas sujas de terra. Os pés pequenos, sapatilhas pretas de pano. O rosto coberto pela burca preta, os cabelos grisalhos escondidos, a pele tão marcada pelas rugas, quanto o solo cor de tijolo da outra deixava-se rachar pelo sol. Eu rachava pelo tempo. Do lado direito uma senhora chora em silêncio, cabeça entre as pernas. Do lado esquerdo outra senhora murmura uma prece. Eu aperto tão forte a correntinha de ouro enrolada na minha palma direita que ela corta a pela seca. Uma gota de sangue escorre. O horizonte é um corredor cheio de mulheres e burcas negras. Tem vezes que eu esqueço de respirar. Não sei se a dor, a pressa de sair dali, ou o falta de palavras. O grande momento é a morte.
Vi-me comprimida dentro de um corpo que não é meu. Nos olhos fechados, a vida parece slide de filme dos anos 70. Sou uma criança que brinca de rodar. Rodar, rodar, rodar. Rodar cada vez mais rápido. Quem sabe assim a alma de desprende desse corpo que não me deixa voar? Os objetos em volta do corpo que roda perdem a forma.. Parede amarela, vaso chinês, Monet, boneca de porcelana, cinzeiro sujo, livros de capa de couro, sofá encardido, ganham a mesma cor: cor de vento. O grande momento é quando fecho os olhos de olhos fechados. Por um minuto me sinto cor do vento. Pena que sempre vem a tontura do corpo, que faz a alma tropeçar.
Vi-me comprimida dentro de um corpo que não é meu. Nos olhos fechados, o medo de abrir. A vida parece mesmo flashe de realidade, principalmente quando há consciência das pálpebras grudadas. A cabeça gira sem rodar. São pensamentos de lá para cá, num vai e vem de idéias, sempre rápidas de mais para se concretizar. A mente é mesmo bomba relógio terrorista. Máquina sabotadora dos grandes momentos. Dá espaço que ela pensa, analisa, descreve, trabalha, inventa, sonha, vive, escreve, faz, enrola, desabotoa, desalinha, constrói tudo outra vez, sempre diferente. O grande momento há de ser quando ela pára. Há de ser. Nem que seja em outro corpo.
Um comentário:
"Na escuridão das pálpebras fechadas, minhas mãos idosas tem unhas sujas de terra"
Isso é uma boa fala para um filme no nordeste. Bem pro lado de Maria Bonita
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