terça-feira, 26 de agosto de 2008

O Rio não é aqui

O cheiro da maresia não chega ao lado de lá. Você nunca sentiu o cheiro de sal? Nosso ar tem gosto de praia, tem vento de mar, textura de água gelada. Do lado de lá a brisa não chega. Tem carro demais. Tem gente demais, paisagem de menos. Do outro lado da cidade - ou será que o outro lado é aqui? - tem criança com saco de lixo preto na cabeça para se proteger do chuvisco. Tem carro tocando funk, tem churrasco em cada esquina, tem mulher de barriga de fora, homem sem camisa, mas não tem mar. Tem trânsito de kombi, pilha de pneu de fusca. Lá, aonde o cheiro não é de sal, o ar é meio marrom. Tem saco de lixo acumulando na esquina, tem mosca voando sob a panela, tem condução soltando fumaça. Tem água do filtro de barro no copo de requeijão. Muita gente carregando sacola de plástico, sorriso de dente amarelo, tinta descascada no muro; muita propaganda eleitoral. Lá, onde a rua faz mais barulho, tem muita loja de roupa de lycra por dez reais. Tem jogo do bicho, fila na loteria, muita gente bebendo cachaça no bar ao meio-dia. Em dias de sol, tem gente suada, tem ônibus lotado, tem muito chinelo pisando no asfalto. Lá, tem linha de trem, trânsito de ônibus, pamonha quentinha na esquina. Lá, é aonde a cidade é a cidade. Do lado de lá, não tem Cristo Redentor, nem chão de pedra portuguesa. Não tem garota de Ipanema, nem areia branca. Tem buraco na rua, tem cachorro magro meio sem pêlo. Lá, eles chamam o canal de valão, polícia é assunto proibido e ninguém pergunta: “será que são fogos?”. Lá, eles sabem que é tiro. Eles se acostumaram com o cheiro de esgoto, assim como nós com o cheiro de mar. Lá, onde as crianças brincam na poça, tem televisão ligada na hora do almoço, tem café meio frio na garrafa que não esquenta mais. Lá, aonde depois da novela é perigoso, é que eles se arrumam para vir para cá. De lá, demora para chegar no serviço, é muita gente saindo antes do sol raiar. Para vir para cá. Aqui eles ficam meio camuflados entre nós - coisa de costume, que nem o cheiro do mar. Nós não somos eles, lá. Aqui, a gente brinca de ser. Mas quando eu vou para lá, abro vidro da janela até em baixo. Ponho a cabeça para fora, cachorro sentindo o vento na cara. Criança de olhos arregalados conhecendo a cidade. O cheiro é ruim, o ar é espesso, tem gente demais me olhando passar. É que eu não sou de lá, não sou do Rio, não tenho lugar. Lá, eu só ponho a cabeça para dentro quando passo perto do Batalhão - o caveirão fica estacionado na calçada (eu tenho medo de fuzil, principalmente na mão de guarda). Quando a polícia olha para mim, eu mostro o crachá. Pedaço de plástico que me protege, passaporte para a vida real. Lá, quando eu faço perguntas, me sinto muito mais boba - não se pode dizer tudo, é mesmo melhor assim. Lá é aonde o Rio é carioca. Aqui, é parque de diversão para turista achar graça e a gente brincar de viver. Lá é que a coisa é séria.

Um comentário:

Anônimo disse...

Esse texto está impecável, admirável, muito inspirador. Era como se eu sentisse tudo isso e nunca tivesse coragem,condição, competência pra dizer.
1, 2, 3 e já!