sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Tenho apenas duas mãos e todas as histórias do mundo, como o poeta

Comecei a ler enquanto fazia as unhas. Sexta-feira é dia de manicure às 9hs. O nome da manicure nova é Rosi – a antiga, a Lú não agüentou a angústia de ficar olhando pela janela a espera do ônibus que o amante dirige e fugiu com os três filhos debaixo do braço para uma cidadezinha do Norte, tão no interior que eu nem sei o nome. Não agüentou, coitada. Também o coração quase pulava pela boca, o meu também. Toda vez que o ônibus passava ela desconcentrava e quase arrancava um bife do meu dedão. Diz a Rosi (é assim com i mesmo) que a Lu foi morar numa casinha nos fundos do terreno da sogra. Deve ter sido culpa, pobrezinha, o que não se agüenta por culpa...

Voltando, comecei a ler e agora estou tão absorta nas cartas trocadas por Fernando Sabino e Clarice Lispector que não consigo parar e estou mesmo ficando atrasada para o trabalho. Eu já vou, eu já vou. As cartas me deram saudades. De que? E por acaso é preciso motivo ou objeto para sentir saudades? A minha vó me contou que quando era novinha tinha aulas com o Aurélio – aquele do dicionário. Um dia o Aurélio disse para a Tônia Carrero (eu sei, essa frase é mesmo surreal). A Tônia e a minha vó eram da mesma turma. O Aurélio disse: “Tônia, você vai ser atriz”. E ela é. Aí o Aurélio disse para uma outra colega de sala da minha vó, (ela não lembrava o nome e “colega” é mesmo o tipo de palavra de vó). O Aurélio disse: “menina, você vai ser famosa”. E a moça é. (A minha vó não sabe o nome, só sabe que é gente muito famosa). Aí um dia, para surpresa da minha vó, o Aurélio chegou para ela e disse: “Marisa, você vai ser escritora”. E a minha vó não é, quer dizer, pelo menos diz que não. Escreve num caderninho coisas que fazem os meus olhos encherem de lágrimas, me escreve cartas de doer o coração, mas diz que não é escritora. Quando me contou essa história, a minha vó disse: “Se eu pudesse voltava no tempo só para dizer para o Aurélio que eu não sou escritora, mas a minha neta é”. “Aí que o sr. Dicionárioráculo ia ver só uma coisa né, vó?”, eu respondi, só para deixá-la continuar achando que eu sou qualquer coisa. É bom que as pessoas tenham com o que sonhar, mesmo que seja através dos outros. Por exemplo, a mãe da minha vó, a minha bisavó, é portuguesa e está com Alzaimer. Passa o dia cantarolando músicas lusitanas do século retrasado, literalmente – ela tem 98 anos. A minha vó estava contando a história do Aurélio, aí eu olhei para a bisa e achei ela com cara de sede. Sabe cara de sede? Se não sabe, nunca deve ter visto alguém com cara de sede. Mas a minha bisa estava sedenta (que feia essa palavra, sedenta é muito pior que faminta). Aí eu disse: “Vó, a bisa não bebe água não?”. E a Bisa disse, como se estivesse lúcida e atenta à conversa: “Eu quero água sim”. Nem sei agora porque conto essa história, já perdi o fio da meada há muito tempo.

Bom, estava lendo as cartas e achei que o livro fosse meu. Não o texto, o livro mesmo. Já tinha derrubado um espirro de café na página 67, já ia escrever na bordinha da 68 um comentário, quando lembrei que o livro é emprestado. Sentiu a frustração? É por isso que eu não gosto de pegar livro emprestado. Aí começou a tocar a música do Tim Maia enquanto a Rosi tirava a cutícula. “Não sei porque você se foi, tantas saudades eu senti...” E tudo ganhou um ar de despedida e de cartas entre Clarice e Fernando. Eu cantei, impossível não cantar. “Cantar faz o dia mais feliz”, disse a Rosi. A Rosi é negra e linda. Mãe de gêmeas e um menino. Quando o mês é bom, ela ganha mil reais. Trabalha de 9 às 8, mora longe, volta de trem. Pelo menos, na sexta-feira, volta no horário do samba. Me chamou para ir com ela. Disse para eu falar com o meu chefe, que ela aposta que se ele deixa eu escrever sobre o pessoal do samba do trem. Eu disse para ela não insistir que eu vou, e aí corro o risco de gostar e quem sabe nunca mais voltar. (Eu sempre corro esse risco) Aí ela disse: “ E tu sabe lá sambá?” “ Rosi, já viu branquela sardenta que nem eu saber sambar?” “Já vou deixar lá avisado, que é para se eles verem uma branquela com cara de princesa não acharem estranho”. (Por que as pessoas tem a mania de me chamar de princesa? Pelo menos é melhor que o Alex, da cantina, que me chama de Branca de Neve....)
Vou dar de presente para a Rosi a minha faixa de colocar no cabelo. É laranja cor de uniforme de gari, vai ficar lindo na pele negra. Também, depois que ela me mostrou como faz o cabelo ficar para cima daquele jeito, o meu cabelo meio ondulado virou liso e perdeu a graça por completo. Quero um cabelo pixaim. Quero ir dançar no samba. Quero pele dura e sem marca. Ando obcecada com uma figura da Kara Walker. É genial. Uma mulher de época fazendo uma bola de chiclete, que na época deveria se chamar goma de mascar, se quer que o treco existia na época da moça de época. Há maior figura revolucionária que uma senhorita de época mascando goma? Chê Guevara, coitado, perde de longe. Melhor ele ficar pro lado de lá das Américas mesmo que quem manda aqui são os americanos.... Pois é, acredite, Kara Walker é negra, americana e feminista. Quem me contou foi a Analu, e como ela sabe tudo de artes, eu é que não discuto. A Analu disse que eu precisava ver a exposição da Kara no Drawing Center, em NY, mas eu não precisava nada, porque se visse, ia levar tudo comigo. Aí eu fugiria para Angola. Quando estudei em Londres conheci uma menina de Angola. Ela parecia brasileira, era negra e falava português. Eles falam português na Angola. Não deve ser difícil arrumar um emprego de escrever lá. Mentira. Sempre é difícil arrumar um emprego de escrever.

Não sei mais escrever a mão e a minha tendinite do pulso dói. Estou atrasada para o trabalho e poderia continuar aqui escrevendo muito mais. Mas há outras coisas mais burocráticas a serem escritas. A matéria dessa semana.... depois eu conto.
Tchau, Salut.

Obs. Não escrevi no livro, usei um caderno. Fiquei com pena, mas continuo gostando de escrever nas bordas dos livros. Da próxima vez que tiver vontade, não estou nem aí, vou escrever e não devolvo mais o livro.

***

Fechei o caderno, o livro, guardei a caneta. Coloquei os óculos. Caminhei em direção ao carro. Devo ter sonhado que escrevia, porque desde que abri os olhos essa manhã, todos os meus pensamentos vem em forma de frases. Fui caminhando pela calçada e o texto se formando. O aperto no peito veio com o medo de perder as palavras. Apertei o passo. Tentei alcançar a velocidade dos pensamentos. Fui tirando da bolsa o caderno, a caneta. Encostei no pitoco, gelo-baiano, chame como quiser esse pedaço de cimento que atravanca as calçadas de Ipanema. Escrevi, escrevo, essas palavras. Quem passa por aqui deve achar que sou louca, imaginar que escrevo uma carta urgente (ainda escreve-se cartas urgentes?), um bilhete suicida (esses escreve-se aos montes), bilhete de amor desesperado (preciso de ti agora). Não deixam de ser palavras urgentes. A urgência das palavras é sempre irremediável. Não sei mais escrever à mão. Não tenho... não tenho... como é mesmo a palavra? Coordenação motora. Não tenho coordenação motora para acompanhar a fluidez de pensamentos. E a tendinite dói. Maldito computador, ou será que a culpa é da cadeira? Voltamos a culpa, veja só. O que importa é o fato. O fato é que me dói o antebraço direito. Serei eu capaz de entender esses garranchos escritos a sombra da amendoeira no encosto do gelo baiano? Acho que agora já consigo dirigir. Estou atrasada, afinal.
So long, farewell.

***

Sentei no carro. Não consigo parar. E agora José? Como chegarei à redação? José, você percebeu que esses pombos de Ipanema não tem mais medo de gente? Um deles quase posou na minha cabeça enquanto eu procurava a chave do carro. Algumas páginas daquele livro que não é meu amassaram, tomara que o Pedro, dono do livro, não perceba. Ainda não abri os vidros do carro. As lentes dos óculos escuros embaçaram. Aqui dentro está muito quente. É começo da primavera e lá fora está fresquinho. Os sabiás já estão fazendo ninho na palmeira da janela do meu quarto. “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”. Eu juro que tem. A minha terra é minha janela. Mas eu já estou suando. Vou abrir os vidros. Chega. Eu vou.
À labuta, amém.

Um comentário:

Pedro Lago disse...

Sei que gosta de comentários sobre a criação, portanto, lá vai:
Sua cabeça não pára ultimamente, eu sei, anda um pouco aflita com a quantidade de coisas, não dorme, não come direito, mas sabe qual a parte boa disso tudo? O texto.
Beijos do seu leitor número um,
Pedro Lago.