quinta-feira, 19 de julho de 2007

Um pé depois do outro

Refazer um trajeto significa anotar-se no mundo. Deixar uma pegada, uma bandeira. Refazer um trajeto escava a cicatriz da passagem. Não é apenas o descompromisso da mão única.
Você me faz falta. Você me fez falta antes que eu te conhecesse. Você me faz falta agora. Isso significa refazer um trajeto. Voltar a você e à falta que você me fez e me faz e há de me fazer sempre. Mesmo que eu esteja ao seu lado. Mesmo que eu sinta a sua mão dentro da minha e o seu corpo fabricando ondas de calor. O suor discreto da sua mão dentro da minha.
Há outro modo? Se é preciso (e é preciso) ter você, há outro modo?

E SE não houver outro modo?
E SE a passagem que podemos fazer um pela vida do outro for esta? Apenas esta? A passagem do viajante?
E SE eu continuar a desenhar você obsessivamente, como fiz durante um ano, pelos próximos dez ou vinte ou trinta?
E SE nos encontros não vierem com o rótulo da família, do cartório, da aliança, da hora do jantar, do jornal à porta pela manhãs, das compras de supermercado, dos chinelos ao pé da cabeceira, da tábua do vaso do banheiro, das escovas de dente, da biblioteca e da discoteca, dos recados presos na geladeira, das xícaras de café sobre a pia com um círculo preto ao fundo, da toalha de banho habitual, do habitual lugar à mesa, da marca preferida de xampu, da secretária eletrônica, da regulagem da torradeira e do retrovisor do carro, das contas ao final do mês, dos amigos em comum?
E SE for preciso assumir a fragilidade de nós mesmo na fragilidade daquilo que somos juntos? Viajantes?

(...)

A viagem nos ensina algumas coisas. Que a vida é o caminho e não o ponto fixo no espaço. Que nós somos feito a passagem dos dias, dos meses e dos anos, como escreveu o poeta japonês Matsu Bashõ num diário de viagem, e aquilo que possuíamos de fato, nosso único bem, é a capacidade da locomoção. É o talento para viajar.

:: Transcrever aqui este trecho de Adriana Lisboa, em Rakushisha, foi inevitável. Estou contaminada pelo que estas palavras significam lado a lado. Não consigo parar de repeti-las, e de lê-las, relê-las. Para andar, basta colocar um pé depois do outro. Um pé depois do outro. Não é complicado. Não é difícil. Dá para ter em mente pequenas metas: primeiro só a esquina. Ou a melhor das viagens, aquela em que não é preciso sair do lugar.

2 comentários:

All Blog Spots disse...

nice blog

Pedro Lago disse...

Sempre há uma saída. Passo-a-passo sobe-se até o Himalaia.