quinta-feira, 10 de maio de 2007

Deuses ressuscitam

Penso duas vezes antes de escrever esses relatos, antes de remexer em sentimentos já asfaltados. Não me surpreenderei se algumas palavras estiverem manchadas, por mim ou pelo tempo. As pessoas têm a mania de enterrar o passado, como parte de si não existisse. Mania de esquecer.

Deuses ressuscitam, é inevitável.

Mente-se por muito motivos.
Proteção.

Muitas vezes fiquei cansada.

O telefone tocou.

Eu não queria mais escutar ou afirmar coisas que eu sabia serem contrárias às verdades, porém condizentes aos sentimentos.
Evitei atender, mas já tinha aprendido que enterrar não é a solução. Enganei os sentidos e o espírito. Atendi e respondi sem escutar. Prestava atenção apenas em sua voz, ao timbre reconfortante. Não deixei que as palavras fizessem sentido.

Ele foi autor de muitas memórias, das minhas memórias, mas há muito tempo vem parando de escrever.

Queria lembrar de como ele era quando jovem. Será que eu me interessaria por ele? Espírito leve, moreno, cachos ao vento, iguais aos meus - ou melhor os meus iguais aos dele. Na primeira vez que o vi, ele devia ter uns 3 anos a menos do que tenho hoje. Não lembro, mas o vi.

Por suas palavras já fui princesa. Menina, já visitei lagos e conversei com peixes falantes, num mundo surreal. Fantasias e esperanças. Criatividade de menino. Menino capaz de tudo. Forte para elaborar cabanas, levantar palácios, construir castelos, e me levar nas melhores viagens: aquelas em que não é preciso sair do lugar. Sonhos. Sonhador que fez sonhadora.

Colhi tampinhas de garrafa, na época em que as garrafas ainda eram de vidro. Queimei castanhas-de-cajú na fogueira. Com as mãos e a roupa pretas, tomei banho no tanque e de mangueira. Mamãe, séria, brigava; ele, moleque, ria e deixava. Era mais divertido do jeito dele.
De tanto perseguir morcegos, catar vaga-lumes, colher sapos e subir em árvores, me tornei corajosa. E quando a onda vinha, ele segurava a minha mão e dizia: “afunda, segura a respiração e afunda. Fica quietinha lá embaixo, não se mexe. E quando ouvir que a onda passou, pode levantar”. Acho que foi assim que fiquei corajosa; aprendendo a parar de respirar e esperar um pouquinho que passava.

Foi exatamente isso que fiz quando descobri que a cabana era de almofadas, que o castelo era de areia, que dessa vez ele partira para nunca mais voltar.

Deuses ressuscitam.

Graças a Deus, que me ensinou.
Graças ao Deus que me ensinou.

Me joga pro alto, me pega no colo. Não dá mais.

Meus olhos, meu nariz, minha boca e esse corpo, que eu odeio, são seus. Iguais aos seus. Choro porque choras, porque te vi chorar, porque me fez chorar, porque me falou que não é vergonha chorar. Sonho, porque ainda hoje, quando olhos nos seus olhos, que são iguais aos meus, vejo-o sonhar. Mas só sonhar. Grande virtude e grande vício. Sonhos que só são sonhados não se concretizam. Cadê aquela força e coragem que você me passava? Tem que estar aí, em algum lugar. Faça alguma coisa, porque você já não é capaz de me levantar.

Engano meus sentidos quando te toco, te cheiro e te ouso. Quando pego nas suas mãos, não sinto os calos que a vida te deu. O seu cheiro é só seu, e meu. O que fala é só a sua voz, as palavras que me encorajam e me chamam para brincar. O resto passa nesse momento em que eu fico sem respirar.

Queria ter te conhecido garoto, ter te ensinado o que eu já sei. Queria que me conhecesse mulher, que reconhecesse em mim o que é seu, que se orgulhasse. Mais como se orgulhar e reconhecer se nos sonhos nunca nos perdemos?

Um dia a gente vai, né pai?

Onde quer que seja, a gente vai.

Mais importante do que ir, pai, é estar. Não o estar de sonhos, o de verdade.
Isso é só para te lembrar, pai, que esse jeito teimoso é seu. Que o meu sorriso é igual ao seu. Que meus sonhos vieram dos seus. A minha esperança é sua. E o meu coração é nosso.

Chega de lembranças. Tenho que prender o ar agora, pai.

Chega.

Vou ficar aqui, com você, segurando a sua mão. Esperando que a onda passe.
Porque ela vai passar, né pai?

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