Multidão. As ruas lotadas em agonia. Pessoas andavam de um lugar ao outro às pressas. Compromissos. Se elas apenas soubessem que o tempo não existe... Impetuosamente o vento ocupava o espaço entre aquelas pessoas apressadas. Cabelos voavam, papéis caiam, folhas secas flutuavam em espiral. Dias de ventania são mais fortes do que noites de lua cheia. Era nesses dias cinzas que ela se sentia imune às forças do tempo. E do destino. Precedida do vento, logo veio a chuva. A solução foi procurar refúgio em um pequeno café. Estar ali, aquela hora da manhã, não fazia parte da rotina. Quase nunca tinha tempo de parar assim, no meio do dia, manhã, que fosse, para tomar um café. Também não tinha o hábito de usar laranja, ainda mais um laranja tão tangerina. Pegou uma revista qualquer, tentou se concentrar em um texto qualquer, e aquela frase veio de novo à cabeça: "como se ao perdemos o mundo, só nos restasse o texto". O mundo havia desabado. Será que ninguém fora ela havia percebido? Não deixou que nem uma lágrima escorresse. Se ao menos ele estivesse ali, sentado a sua frente, com aquele olhar fixado em seus olhos... Essa idéia a irritava ainda mais. Como é possível esperar encontrar a salvação no olhar do outro? Decidiu escrever.
O homem não sabe como gastar os dias. Alguém o avisa que o tempo é um material perigoso nas mãos de quem não o sabe usar. A cidade, uma teia de olhos e passos, apanha quem nela cai. E o mar sempre tão perto. A beleza pode ser um pretexto para se enlouquecer. A beleza e a solidão. Mas é o desespero que faz acreditar que se pode roubar o coração de quem se ama*
Ela usava tinta preta entorno dos olhos. Havia quem dissesse que os olhos dela tinham um brilho intenso, ofuscantes quando imersos na escuridão. Havia quem dissesse que a culpa era das lentes de contato. Ele ainda não descobrira o motivo. Era a primeira vez que a via, já a observava há algum tempo, não sabia ao certo há quanto tempo. Sabia que o tempo é relativo. Sabia que estava ali há tempo o suficiente para perceber que toda vez que ela pisacava os olhos, ele sentia doer dentro dele, e aquele milésimo de segundo tornava-se infinito. Estava facinado pelos cílios dela, pelo movimento que faziam durante o abrir e fechar dos olhos.
Quando ela levantou os olhos do papel, deu de olhos com ele. Não eram os olhos que ela esperava. Os novos olhos a intrigaram. Não deixou o olhar baixar. Estabaleceu uma disputa, enquanto tentava adivinhar se era o laranja sevilhano da suéter que estava chamando a atenção dele, se ele também havia percebido que o mundo desabara, se sabia que o tempo pode não existir. Mal sabia ela que estava brigando consigo mesma. Ele não estava ali para lutar. E como um último golpe, numa tentativa de tirá-lo do mundo dele, quem sabe conseguir uma reação, ou uma palavra, palavra viva, palavra com temperatura, gradualmente começou a diminir o intervalo entre cada vez que piscava os olhos. De nada adiantou. Quanto mais ela piscava, mais ele se concentrava e entretia. Foi então que ela começou a ter a estranha sensação de que ele estaria contando o seu involuntário - mas já voluntário - ato de piscar.
Ele estava tão concentrado no olhar, que não conseguia vê-la como um todo.
Quando ela compreendeu, se levantou e foi. Havia parado de chover.
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